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RESENHA SOBRE OS TAMBORES DE SãO LUíS - 28.04.2020 às 21:47:27

Por: Joseane


Resenha publicada no Jornal Pequeno de 28 de abril, 2020 na Coluna Letras de Sempre.

OS TAMBORES DE SÃO LUÍS – Josué Montello

Alexandre Maia Lago - Advogado e escritor

Passos ainda firmes, postura altiva, conciliando-se à lucidez, não denunciavam os
oitenta anos daquele ancião. Caminhava pelas mal alumiadas e desertas ruas da São
Luís do início do século XX. Acabara de sair da Casa das Minas, lugar onde tantas
vezes assistira noviches dançarem ao som dos tambores, “do tinir do ferro dos ocãs e do
chacoalhar das cabaças”. O fervor musical, uma coreografia de séculos arrebatavam-no,
sendo-lhe suave terapia espiritual, sentindo voltar a ser-lhe propício “o vodum que
acompanha na terra os passos de cada negro”. Daquela vez, pouco antes de entrar na
casa havia sido acometido pela sensação de que uma estranha ocorrência a ele se ligava
naquele exato instante. Lembrou-se disso enquanto continuava seu percurso a caminho
da casa da bisneta, na Gamboa, onde, haviam-no avisado, ela já sentia os trabalhos de
parto.
À procura de um fósforo pra acender um cigarro, entra em um boteco no canto da
Rua do Passeio com a Rua Grande e, para seu espanto, depara-se com assustador
cenário: dois homens mortos entre garrafas e copos quebrados, aparentemente vítimas
de latrocínio. Numa rápida reflexão, resolve sair e nada contar a respeito, para evitar
possíveis dissabores judiciais. Dava-se tal direito por saber que a Justiça não costumava
pender para os desimportantes iguais a ele. Segue então seu rumo. As praças, ruas e
certos casarões coloniais invocam reminiscências de uma longa vida na qual não
faltaram emoções.
A escravidão numa fazenda onde, um dia, seu pai e outros cativos, após incendiá-
la, fugiram levando a família. Enfrentaram meses de intempéries nas matas até
acomodarem-se num ponto perdido qualquer, estabelecendo aí um quilombo que logo
passou a receber escravos fugidos de outros engenhos. Ali, experimentou tempos de paz
e aprendeu a ler com o pitoresco e teatral escravo Barão, alcunha devida ao título, que
dizia ter sido concedido pelo próprio Negro Cosme, líder da revolta dos Balaios.
Quando uma traição leva à localização dos quilombolas pelos capitães do mato, os que
sobrevivem são levados de volta à fazenda Bela Vista.
Agora, ao lembrar disso tantos anos depois nessa caminhada noturna à Gamboa,
admira-se do quanto ascendeu. Na juventude, foi milagrosamente salvo da morte nas
mãos do seu senhor, e, por obra de outro milagre, levado à capital para estudar e ser
ordenado padre. O preconceito clerical fechou-lhe a porta à ordenação. Todavia, os anos
de seminário concederam-lhe estofo intelectual para tornar-se respeitado latinista e
professor do Liceu. Contudo, pesava-lhe a consciência de “nada ter feito ainda em favor
de sua raça cativa”. Mas como fazê-lo? Denunciar a quem? A morte brutal de sua
protetora e amiga Genoveva Pia leva-o a uma mudança definitiva. Durante uma aula,
denuncia aos alunos e professores a violência da escravidão. E, ao resolver tomar isso
como um sacerdócio, ser demitido do magistério será a primeira consequência dela.
Tendo-lhe sido fechadas todas as portas, resvala outra vez para a corrosão social e
econômica. Ele, que sempre se indignou com a miséria da escravidão, agora, sem
emprego, aproxima-se da miséria dos livres.
A situação dá uma guinada ao conseguir trabalho numa biblioteca e como revisor
de um jornal. Intensifica ainda mais a atividade abolicionista, não sem receber desaforos
em cartas de anônimos escandalizados, que diziam faltar nesses tempos “o chicote de
Donana Jansen” numa “terra em que negro já escreve em jornal”.
A visibilidade obtida permite-lhe conhecer, em situações amigáveis ou mesmo
animosas, ilustres personagens cujos nomes deixaram marcas na história do Maranhão.
Assim, perpassam pela sua vida o jovem promotor Celso Magalhães, que levou ao
banco dos réus uma ilustre aristocrata acusada de assassinar um garoto escravo; o

visionário poeta Sousândrade, republicano de grandes sonhos; Ana Jansen, a mulher
mais poderosa de seu tempo, cuja reputação de perversa seria ainda mais agravada por
seus inimigos, o governador Luís Domingues, o professor Sotero dos Reis, o médico
Silva Maia... Todos, em seu tempo e com seus feitos, testemunhados por Damião.
A negra fula Benigna, a mais bela que a cidade já vira, com seu caminhado
soberbamente faceiro sob o ritmo de seus tamancos, enfeitiçava a imaginação masculina
dos transeuntes. Inclusive a de Damião, que, desde os tempos do seminário, a perseguia
em pensamento. O destino ajustou os ponteiros para que ele a reencontrasse anos após
vê-la passar pela primeira vez. E com ela terminaria seus últimos dias.
De certa forma, tinha-se por um homem realizado, pois vivera o bastante para ver
a tão sonhada abolição da escravidão, desde os embustes legislativos até a inevitável Lei
Áurea, o raiar da República e o nascimento do trineto, a quem dera o nome Julião em
homenagem ao seu pai. Pesava muito, no entanto, a ausência do filho, que um dia
partira na Marinha Mercante e nunca mais deu notícia.
No final, essa vida de suadas conquistas e muitos golpes duros lhe reserva mais
um, ao saber os detalhes do crime ocorrido naquele boteco no dia anterior: um daqueles
mortos era justamente o seu filho, que, regressando sem avisar, resolvera parar naquele
lugar, sendo ali vítima de latrocínio.
A SAGA DE TODOS NÓS
História e antropologia em um cenário de sofrimento, violência, resistência
e preconceito são alguns dos ingredientes presentes nessa obra-prima que nos conta, no
decorrer de uma noite, um teatro trágico de três séculos, pondo a nu a psicologia de uma
sociedade que conheceu o apogeu econômico sob a força de trabalho de outras gentes
distantes, separadas fisicamente para sempre de seu chão. Fluência e nitidez narrativa
fazem de “Os Tambores” um monumento literário e leitura fundamental para
conhecermo-nos um pouco mais, jogando luzes sobre nossos antepassados em uma
época tão real quanto absurda, cujas marcas estão, sob muitos ângulos, vivíssimas.

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